Você já falou de morte com as crianças?
Giuliana Bergamo
02/11/2019 11h19
No intervalo de menos de uma semana, meus filhos perderam dois bisavós. Ficaram tristes, é claro. Bisavós não dispõem da mesma energia dos avós ou dos tios. Mas eles sempre têm um abraço fofinho, um pote cheio de biscoitos e guloseimas, umas histórias muito malucas para contar.
Bisavós também têm outra coisa: eles são os avós dos nossos pais, os pais dos avós e, quando morrem, a família inteira volta a ser criança. Mas criança de um jeito ruim. Volta a ser um menino ou uma menina que perdeu um pedaço da infância, do aconchego, da segurança. Fica todo mundo muito triste. E as crianças de verdade parecem bem chocadas quando veem os adultos assim.
Não tive dúvida sobre como dar a notícia. Eu e o pai deles apenas sentamos no sofá, chamamos minha filha e meu filho para perto e dissemos: "Então… o biso estava velhinho e, essa noite, morreu". Os pequenos se aninharam na gente e choraram um pouco. Há tempos já sabiam que os velhinhos costumam morrer antes. Mas, até então, eu não fazia ideia do quanto eles realmente compreendiam o que é a morte.
Já tínhamos falado sobre isso antes, mas, no mundo infantil, sempre existe um espaço maravilhoso entre o que nós adultos dizemos e o que gostaríamos que eles compreendessem. Nesse vão, entra a fantasia e uma porção de histórias lindas ou, vez ou outra, terríveis, que eles enfiam na cabeça. Quem tira de lá?
Não demorou muito para que eu percebesse que as coisas estavam meio confusas, mesmo. Sentado sobre o vaso, fazendo cocô enquanto eu arrumava alguma coisa no banheiro, meu filho perguntou:
"Mãe, por que tiram a cabeça do morto?"
"Tiram a cabeça, filho? Como assim?", respondi.
"Ah, o papai disse que, depois que a gente morre, fica só o corpo. Para onde vai a cabeça?"
Ri e expliquei que não era bem assim. Que a cabeça faz parte do corpo, então fica tudo lá. O que vai embora, contei, é a alma. "Mas, mãe, o que é alma?" Aí ficou mais difícil. Às minhas tentativas de mostrar o que é a alma, meu filho apenas respondeu: "Mãe, eu não estou sentindo minha alma, não entendi".
Foi então que decidi levá-los ao velório do meu avô. Eu não tinha certeza de que aquela era uma boa decisão. Ver o bisavô ali, frio e inerte coberto de flores poderia, sim, concretizar o que é a morte, mas também poderia criar ainda mais minhocas na cabeça das crianças. Será que teriam pesadelos? Ficariam com muito medo?
Sei lá. Filhos de dois jornalistas, eles convivem com a sorte e o azar de serem apresentados ao mundo sempre com a verdade. Nada de fake news! E, então fomos nós ao velório do biso, uma cerimônia muito simples e íntima, porque minha família decidiu que meu avô não ia querer que todo mundo o visse ali, no caixão.
Os dois chegaram com cautela, um pouco constrangidos com a situação. Abraçaram todo mundo e devem ter notado que, naquele dia, os abraços foram mais longos, com mais beijinhos, cheirinhos no cangote. Também teve mais pedidos para que contassem o que andavam fazendo de bom e mais gente interessada em entretê-los com as flores do jardim, o gatinho no muro.
Muita gente (eu não) bem que tentou tirar meus filhos do foco. Mas ninguém conseguiu. Eles fizeram questão de dar aquela espiadela no bisavô deitado no caixão. Logo depois da visão, minha filha pediu um pedaço de papel qualquer. Ganhou dois. Em um desenhou o biso de mãos dadas com ela, em um jardim cheio de flores maiores do que eles. No outro, anotou o número de sorte e o nome do meu avô. E colocou tudo sobre ele, entre as flores. "Tchau, biso".
Já meu filho partiu para uma sequência de traquinagens que incluíam cuspir no jardim e puxar a roupa dos outros. Levou broncas leves primeiro e, depois, foi chamado para uma conversa séria no canto. Até que aquietou, sentou em uma cadeira, largou o corpo e escorregou dizendo: "Como é chaaaaaaaaaato morrer!".
Sim, morrer é chato, mesmo. E triste pra caramba. Mas não tem como fugir disso. Dá até para atrasar um pouco — ou bastantão, como mostrou uma reportagem do UOL TAB "A morte no vácuo", sobre tecnologias que prometem prolongar a vida. Mas também dá para tornar tudo menos dolorido se conseguirmos passar por cima do tabu e tratar o assunto, desde cedo, com naturalidade.
Desde aquele dia, passamos a contar muitas histórias sobre os bisos: aquelas das quais as crianças participaram e outras, de quando elas ainda nem existiam. Curtimos as fotos, colocamos objetos que eram dos nossos avós ou que eles nos deram em lugares de destaque na casa. Afinal, morrer também pode ser dar as mãos num jardim ou ser eternizado nas memórias boas que guardam da gente.
Sobre a Autora
Giuliana Bergamo é jornalista e editora de Ecoa. Em mais de 15 anos de profissão, se orgulha por ter varrido o país (e uns cantos fora dele) em busca de boas histórias para contar. Elas foram publicadas nas reportagens que produziu para os veículos pelos quais passou – Veja, Veja-SP, BandNews FM, Viagem e Turismo. Entre os anos de 2015 e 2018, comandou o Prêmio CLAUDIA, então a maior premiação feminina da América Latina.
Sobre o Blog
Causos, dicas e reflexões sobre as crianças e o lugar da infância na construção de um mundo melhor.