“Minha filha roubou um celular”
"Minha filha roubou um celular", disse minha amiga. Aflita, ela recebera a notícia por telefone. Ao perceber que se tratava do número da escola, pediu licença e saiu de uma reunião para atender o chamado. Voltou e, ao final do compromisso, foi até o café para desabafar comigo. E então contou:
Naquela tarde, sua filha e outras amigas (todas com oito anos) distraíram o assistente da professora com abraços e gracinhas e passaram a mão no telefone do rapaz, que estava guardado no bolso do avental. Fugiram para um cantinho da escola e lá destravaram o aparelho — as espertinhas já andavam ligadas nos movimentos dos dedos do educador a cada vez que ele precisava desbloquear o negócio. Mal tiveram tempo de fazer qualquer coisa, foram denunciadas por um colega da outra turma.
Ouvi a história atenta e fiz algumas perguntas. À medida que respondia, percebi que minha amiga foi se acalmando. As garotas tinham sido repreendidas pela professora e a diretora, é claro. Na conversa, falaram não apenas sobre tirar algo do outro, mas sobre invasão de privacidade. Foram também punidas: por alguns dias (já não me lembro mais o número exato) perderam o direito de ficar no parque sem serem monitoradas por adultos. E ponto.
Ao final da conversa, concluímos, estava tudo bem. A traquinagem faz parte da idade. Por trás da atitude das meninas, talvez tivesse um certo fetiche pelos eletrônicos dos adultos, uma boa dose de desejo de aventura, de transgressão. E o comportamento estava sendo devidamente repreendido pelos adultos. Minha amiga conversaria com a filha mais tarde, provavelmente aplicaria algum tipo de punição também. Tudo ficaria bem novamente. Vida que segue.
Agora convido você que chegou até essa linha do texto (obrigada!) a fazer comigo um exercício de reflexão. As meninas dessa história são todas brancas e estudam em uma escola particular e cara da zona oeste de São Paulo. Mas… e se a escola estivesse em outra porção da cidade? Uma periferia do extremo sul, por exemplo? E se as meninas fossem negras? E se as mães trabalhassem como caixas de um supermercado e não pudessem usar o celular durante o expediente para ligar para uma amiga para se acalmar depois de uma notícia aflitiva? E se…
No documentário "O Código Bill Gates", sobre a história do fundador da Microsoft e disponível na Netflix, Melinda Gates (a mulher dele) conta sobre como o casal ficou chocado ao saber, por meio de uma reportagem, que, na África, crianças ainda morrem por diarreia, uma doença de tão simples tratamento. "Na época, nossa filha era pequena. E eu sabia que, se ela tivesse diarréia, eu iria à farmácia ou ao médico. Se eu fosse uma mãe em um país em desenvolvimento, minha filha talvez não sobrevivesse", diz.
A comoção de Melinda é a mesma da Major Denice Santiago, cuja história publicamos em Ecoa. Diz ela sobre a diferença de tratamento que a polícia dá a moradores de regiões mais nobres e aqueles que vivem em áreas periféricas: "O lugar onde a pessoa vive não pode determinar a forma como ela vai ser tratada." Não pode, Denice, não pode. Mas não é bem isso o que tem acontecido no mundo, não é?
Se fosse negra e pobre, estudante de uma escola pública, a história da filha da minha amiga talvez fosse muito diferente.
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